A Experiência da Greve e a Ruptura de Expectativas
O Dilema da Confraria Jornalística em 1979
O ano de 1979 foi um período efervescente na história política e social do Brasil, marcado pelo declínio da ditadura militar e a ascensão de movimentos sociais e trabalhistas que ousavam desafiar o status quo. Nesse cenário de crescente mobilização, a greve dos jornalistas, que mobilizou profissionais em diversas redações do país, representou um teste crucial para a coesão da categoria. Embora a paralisação tivesse como objetivo a reivindicação de melhores condições de trabalho e reconhecimento profissional, foi no comportamento dos envolvidos que se revelaram as fissuras na percepção de uma “humanidade” compartilhada, desafiando a solidariedade e a ética profissional.
A adesão à greve era um ato de solidariedade e compromisso com os princípios coletivos da classe. Contudo, a ausência de uma unidade sólida entre os grevistas, bem como a percepção de uma liderança sindical por vezes fragilizada, geraram um ambiente de desconfiança interna. O ponto de inflexão para muitos grevistas não foi a decisão individual de alguns colegas de não aderir ao movimento, um direito que, em tese, lhes assistia como trabalhadores autônomos. A verdadeira ruptura surgiu da observação de que alguns desses profissionais optaram por ingressar nas redações utilizando-se de veículos da Polícia Militar, as icônicas Veraneios, acessando as instalações por entradas de serviço, como as garagens. Essa atitude, que simbolizava uma colaboração ativa com o aparato repressivo do Estado contra os próprios colegas que se mantinham em piquete sob risco de confronto, foi interpretada como um ato de traição inquestionável. A distinção se estabelecia claramente: de um lado, aqueles que exerciam um direito individual dentro dos limites da legalidade; de outro, aqueles que, ao se aliarem às forças de repressão e furar abertamente a greve sob essa proteção, pareciam renegar qualquer laço de solidariedade de classe, desafiando a noção de pertencimento a uma mesma “espécie” profissional e humana. Esse episódio deixou cicatrizes profundas na memória da categoria, redefinindo as relações e questionando a profundidade dos laços de confraternidade e lealdade profissional.
Perspectivas Ideológicas sobre a Condição Humana e a Luta de Classes
Do Ideal Unitário ao Pragmatismo Político na Defesa dos Direitos
A compreensão da “humanidade” e do papel do indivíduo na sociedade é frequentemente moldada por lentes ideológicas, que oferecem diferentes interpretações sobre a natureza dos conflitos e as vias para a transformação social. Duas correntes políticas historicamente influentes no Brasil, o comunismo e o trabalhismo, apresentam visões distintas sobre esses temas, cada qual com sua própria abordagem para a justiça social e a organização da vida em sociedade.
Para os adeptos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), inspirados pelo marxismo-leninismo, a humanidade é vista não como uma essência fixa, mas como uma construção social, passível de ser unificada em torno de um projeto coletivo e revolucionário. A premissa central é que, uma vez superadas as divisões de classe inerentes ao capitalismo e eliminadas as estruturas que perpetuam a exploração e a desigualdade, seria possível alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, onde a solidariedade prevaleceria. Nesse arcabouço teórico, a luta de classes é considerada o motor da história, e a transformação radical das relações de produção é o caminho para a emancipação, implicando, por vezes, a necessidade de confrontar e desarticular as forças burguesas consideradas recalcitrantes ao processo revolucionário. A meta é, em última instância, forjar uma nova humanidade, livre das alienações impostas pelo sistema capitalista, capaz de cooperar plenamente para o bem comum.
Em contraste, a linha trabalhista, associada a figuras como Leonel Brizola, embora também reconhecendo a existência da luta de classes e a necessidade de enfrentamento, propõe uma abordagem mais pragmática e reformista. A estratégia central dos trabalhistas reside na busca por governabilidade e na construção de pactos sociais, buscando conciliar interesses antagônicos na medida do possível. O objetivo é mediar os conflitos entre capital e trabalho e promover a justiça social, preferencialmente através da negociação e do diálogo. Contudo, quando o diálogo se mostra inviável ou insuficiente, a intervenção do Estado, por meio de sua força política, é considerada legítima e necessária para impor direitos e garantir a dignidade da população trabalhadora. O legado de Getúlio Vargas e o Estado Novo, com a consolidação de leis trabalhistas e sociais fundamentais – como a criação da CLT –, é frequentemente citado como um exemplo histórico dessa capacidade do Estado de intervir para assegurar direitos mínimos, mesmo que por meio de um regime autoritário. Essa perspectiva valoriza a obtenção de ganhos concretos e progressivos para os trabalhadores e a construção de um Estado de bem-estar social, ainda que isso envolva tensões e confrontos com os setores mais conservadores da sociedade. Ambas as correntes, apesar de suas divergências metodológicas e filosóficas sobre a natureza humana, buscavam, a seu modo, redefinir as relações humanas em busca de maior justiça e equidade social no Brasil.
A Fragilidade da Solidariedade e a Crise da Humanidade em Cenários de Crise
A complexidade da condição humana, suas noções de ética e solidariedade, é posta à prova de forma contundente em cenários de desespero social e econômica. Um incidente ocorrido em uma fábrica de balanças, que passou por um período de greve, ilustra a crueza com que a dignidade humana pode ser aviltada em momentos de vulnerabilidade extrema. Em meio a uma paralisação motivada pelo atraso salarial de meses, o proprietário da fábrica, em vez de honrar seus compromissos financeiros com seus funcionários, propôs uma solução distorcida e moralmente questionável: os empregados deveriam vender balanças da própria empresa no mercado informal para angariar os trocados necessários à sua subsistência. Essa prática não apenas desresponsabilizava o empregador de suas obrigações legais, mas também empurrava os trabalhadores para uma situação de vulnerabilidade, ambiguidade moral e, em muitos casos, para a informalidade e a precariedade.
O episódio se aprofunda com o caso de uma operária doente, que, sem recursos financeiros para pagar uma consulta médica, procurou um profissional de saúde de reputação social consolidada, ligado a instituições de prestígio e filantropia na comunidade. Ao invés de oferecer auxílio humanitário ou um plano de pagamento acessível e justo, o médico, ciente da situação da fábrica e da precariedade dos funcionários, sugeriu que a operária lhe trouxesse duas balanças da empresa como forma de pagamento pelos seus serviços. Essa troca, que em outras circunstâncias poderia ser vista como um arranjo, revela uma profunda indiferença ética e uma exploração da fragilidade alheia, independentemente da posição social, filiação institucional ou suposta benevolência dos envolvidos. A atitude do médico, que personificava uma elite social com acesso a recursos e influência, expôs uma falha gritante na empatia e na solidariedade esperada de um profissional de saúde, questionando a existência de uma humanidade intrínseca que transcenda as barreiras de classe e o interesse pessoal em situações de crise.
Esses exemplos, da greve de jornalistas que dividiu uma categoria profissional até a exploração na fábrica de balanças e a conduta questionável do médico, convergem para uma reflexão crucial: a “humanidade” não é um dado imutável ou uma qualidade universalmente presente em todos os indivíduos. Ela emerge, ou se retrai, nas escolhas e atitudes individuais e coletivas em face dos conflitos e das adversidades. A solidariedade, a ética e o respeito à dignidade humana são construções sociais complexas que se manifestam de maneiras diversas, muitas vezes surpreendentes, e que exigem constante vigilância e engajamento. Em vez de uma essência única e inabalável, a humanidade se revela em uma tapeçaria complexa de comportamentos, onde a capacidade de empatia e a luta por justiça se chocam com o egoísmo, a indiferença e a exploração, delineando um mosaico desafiador de nossa própria condição e da busca contínua por um ideal de convivência mais justo e equitativo.