A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) derrubou, em uma sessão realizada na última quinta-feira (18), o veto imposto pelo governo estadual à polêmica medida conhecida como “gratificação faroeste”. Essa provisão, que reaparece na legislação fluminense, tem como objetivo principal premiar policiais civis envolvidos em ações que resultem na “neutralização de criminosos”, um termo que gera intensa controvérsia. A decisão da Alerj reintegra o artigo à Lei 11.003/25, responsável por reestruturar o quadro permanente da Secretaria de Estado de Polícia Civil, abrindo caminho para que policiais recebam bonificações financeiras significativas por tais ocorrências, variando de 10% a 150% de seus vencimentos, sob condições específicas que incluem a “gratificação faroeste”.
O restabelecimento da polêmica gratificação
A medida que tem gerado ampla discussão no cenário político e de segurança pública do Rio de Janeiro é parte integrante da Lei 11.003/25, que visa a uma reestruturação profunda no quadro de pessoal da Secretaria de Estado de Polícia Civil. No entanto, o ponto mais sensível e que atraiu a alcunha de “gratificação faroeste” é a previsão de bonificações para policiais civis em situações de confronto letal. A derrubada do veto executivo pela Alerj recoloca este dispositivo em vigor, reacendendo debates antigos sobre a letalidade policial e os incentivos à atuação das forças de segurança.
Detalhes da lei e seus mecanismos
O artigo em questão estabelece uma série de critérios para que um policial civil seja elegível para a gratificação. Além da “neutralização de criminosos”, outras ações que podem gerar o prêmio incluem a vitimização em serviço, ou seja, situações em que o policial é ferido ou se torna vítima no cumprimento do dever, e a apreensão de armas de grande calibre ou de uso restrito durante operações policiais. Os valores da gratificação são variáveis, podendo chegar a impressionantes 150% dos vencimentos do agente, um montante que sublinha a intenção de incentivar tais condutas. Essa estrutura de premiação levanta questões cruciais sobre a forma como a segurança pública é concebida e implementada no estado, especialmente no que tange ao equilíbrio entre o combate ao crime e a salvaguarda dos direitos humanos. A linguagem utilizada, em particular o termo “neutralização”, já é um foco de preocupação para diversas entidades, que a consideram ambígua e potencialmente perigosa.
A derrubada do veto executivo
Originalmente, o trecho que previa a “gratificação faroeste” havia sido vetado pelo Poder Executivo sob a justificativa formal de ausência de previsão orçamentária para a realização dos pagamentos. Este tipo de veto é comum quando projetos de lei implicam aumento de despesas sem a devida indicação de fontes de receita. Contudo, a sessão da Alerj que derrubou o veto apresentou um cenário político peculiar. O deputado Rodrigo Amorim (União), líder do governo na própria Casa Legislativa, surpreendentemente defendeu a derrubada do veto, indo de encontro à posição inicial do governo estadual que ele representa. Essa manobra política gerou especulações e evidenciou uma possível cisão ou um jogo de forças dentro da base governista ou entre o Executivo e o Legislativo. A decisão da Alerj de reverter o veto, apesar da preocupação orçamentária expressa pelo governo, demonstra a forte vontade política de implementar essa gratificação, independentemente das ressalvas financeiras ou legais que a cercam.
As críticas e contestações legais
A medida da “gratificação faroeste” não é apenas um ponto de controvérsia política e orçamentária; ela é alvo de severas críticas e denúncias de ilegalidade por parte de importantes órgãos de defesa dos direitos humanos, destacando a Defensoria Pública da União (DPU). As contestações se baseiam em princípios constitucionais e em precedentes jurídicos de instâncias superiores, tanto nacionais quanto internacionais, que questionam a constitucionalidade e a ética de um sistema de premiação que pode, em tese, incentivar confrontos letais.
A posição da Defensoria Pública da União
A Defensoria Pública da União (DPU) foi uma das primeiras e mais veementes instituições a se manifestar contra a “gratificação faroeste”, já em setembro deste ano. Segundo a DPU, o dispositivo que estabelece a premiação estimula, de forma direta ou indireta, confrontos letais, o que viola frontalmente a Constituição Federal. A DPU argumenta que tal incentivo contraria decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal (STF) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), órgãos que reiteradamente defendem a prevalência da vida e a moderação no uso da força por parte do Estado.
Além do aspecto da inconstitucionalidade material, a Defensoria também aponta um “vício de iniciativa” no projeto. Propostas que instituam gratificações para agentes de segurança, segundo o entendimento jurídico predominante, devem ter iniciativa da respectiva chefia do Poder Executivo, e não do Poder Legislativo. Isso significa que, mesmo que o conteúdo fosse constitucional, a forma como foi proposto teria falhas processuais que o tornariam inválido. Um dos pontos mais criticados pela DPU é o próprio termo “neutralização”, utilizado na lei. Para o defensor regional de direitos humanos do Rio de Janeiro, Thales Arcoverde Treiger, o termo é impreciso e, por si só, viola a dignidade da pessoa humana. Treiger enfatiza que “Pessoas não são ‘neutralizadas’, mas sim são mortas ou feridas, havendo exclusão, ou não (constatada após investigação policial e eventualmente de processos judiciais), da ilicitude em razão da necessidade de preservação da vida ou da segurança de pessoas inocentes”. Essa colocação sublinha a preocupação de que a linguagem empregada na lei possa desumanizar indivíduos e legitimar ações sem o devido processo legal e a apuração da responsabilidade.
Precedentes e o histórico da medida
A política da “gratificação faroeste” não é uma inovação no cenário do Rio de Janeiro, o que adiciona uma camada de complexidade e preocupação ao debate. Uma política semelhante esteve em vigor no estado entre os anos de 1995 e 1998. Naquela época, a medida acabou sendo suspensa pela própria Alerj, a mesma Casa Legislativa que agora a restabelece. A suspensão foi motivada por sérias denúncias de extermínio e de estímulo à letalidade policial. O histórico dessa política, portanto, é marcado por controvérsias e acusações graves, o que levanta um sinal de alerta sobre as possíveis consequências de seu retorno. A reedição da gratificação, apesar do passado problemático, reflete uma persistente abordagem de segurança pública que prioriza o combate direto e, em alguns casos, letal, ao invés de estratégias que enfatizem a prevenção, a investigação qualificada e a redução da violência através de meios não-letais. O fato de ter sido suspensa anteriormente pela mesma Alerj, após a constatação de seus efeitos negativos, adiciona um tom de ironia e um questionamento sobre o aprendizado com a história recente do estado.
Implicações e futuro da segurança pública
A decisão da Alerj de derrubar o veto à “gratificação faroeste” marca um momento de intensa controvérsia e aponta para possíveis rumos na política de segurança pública do Rio de Janeiro. De um lado, defensores da medida argumentam que ela serve como um incentivo necessário para a atuação policial em um estado marcado pela alta criminalidade e pela violência. Eles veem a gratificação como uma forma de reconhecimento e valorização do trabalho arriscado dos policiais, estimulando o enfrentamento direto a grupos criminosos.
Por outro lado, a forte oposição da Defensoria Pública da União e de outras entidades de direitos humanos sublinha as preocupações com o potencial da gratificação de elevar ainda mais os já alarmantes índices de letalidade policial no estado. O histórico da medida, com sua suspensão anterior devido a denúncias de extermínio, serve como um poderoso lembrete dos riscos envolvidos. A ambiguidade do termo “neutralização de criminosos” é vista como uma porta aberta para interpretações elásticas e abusos, que podem comprometer a dignidade humana e o devido processo legal. A reedição dessa política lança um desafio significativo à sociedade fluminense e às instituições democráticas, que terão de monitorar de perto os desdobramentos e garantir que a busca por segurança não se faça à custa da vida e dos direitos fundamentais dos cidadãos. O debate em torno da “gratificação faroeste” é um microcosmo das tensões entre a eficácia policial e a observância dos direitos humanos em um dos estados mais violentos do Brasil.
Perguntas frequentes
1. O que é a “gratificação faroeste” e por que ela é controversa?
A “gratificação faroeste” é um dispositivo da Lei 11.003/25 do Rio de Janeiro que prevê o pagamento de bônus (entre 10% e 150% dos vencimentos) a policiais civis por ações específicas, incluindo a “neutralização de criminosos”. É controversa porque críticos, como a Defensoria Pública da União, argumentam que ela pode estimular confrontos letais, violar a Constituição Federal e desrespeitar a dignidade humana, além de ter um histórico problemático no estado.
2. Qual foi o papel da Alerj e do governo do estado nessa decisão?
O governo do estado do Rio de Janeiro havia vetado o dispositivo da gratificação, alegando falta de previsão orçamentária. No entanto, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) derrubou esse veto em sessão, inclusive com o apoio do líder do governo na Casa, deputado Rodrigo Amorim (União), restabelecendo a medida na lei.
3. Essa política já existiu no Rio de Janeiro?
Sim, uma política semelhante, também apelidada de “gratificação faroeste”, vigorou no estado do Rio de Janeiro entre 1995 e 1998. Ela foi suspensa pela própria Alerj na época, após denúncias de extermínio e estímulo à letalidade policial, o que intensifica as preocupações com seu retorno.
Para aprofundar a compreensão sobre os impactos dessa e de outras políticas de segurança pública, acompanhe as análises de especialistas e os debates legislativos no site da Alerj e nas plataformas de notícias sobre o Rio de Janeiro.